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A DERRAMA E OS QUINTOS

Através de matéria com o título acima (detectada em 20.06.2009) Wikipédia derramou erros superlativos (cometidos por muitos historiadores) sobre nossa História. Tentamos contribuir para que tirassem os erros desse artigo, mas os guardiões da Wikipédia, mais uma vez, nos impediram. Assim, apresentamos, a seguir, entre aspas, os erros da Wikipédia que precisam ser combatidos sobre a Derrama e os Quintos.

Após termos publicado esta matéria no mgquilombo, o autor Wikipédia acertou a maioria dos erros que haviam publicado,  copiando pedaços de nosso texto e colando ipsis litteris em seu texto. Tudo bem. O mgquilombo autoriza a cópia. Assim, em homenagem ao autor da Wikipédia que reconheceu seus erros, acrescemos em nosso artigo as suas principais fontes documentais que podem ser aferidas em busca por palavra e ano do fato no site da UnB. Confira.

Afirmava o texto da Wikipédia que:
Derrama
foi uma espécie de cobrança forçada dos impostos atrasados, criada pelo Marquês de Pombal.
Derrama não era imposto. Era um dispositivo coator apenas contra os homens-bons (brancos e ricos), para que estes zelassem pela arrecadação dos reais quintos. E não foi criada pelo Marquês de Pombal que apenas implantou o novo sistema de fundição. Vide Verbete n. 4648 do IMAR/MG (*), Cx. 57, Doc. 40, do AHU – 03.12.1750.
O texto da Wikipédia errara também ao afirmar que:
O quinto era uma taxa per capita, em quilos de ouro, que a colônia era obrigada a mandar para a metrópole, independente da real produção de ouro. Cobrado dos mineradores e colonos em Minas Gerais no tempo do Brasil Colônia foi um dos fatos que motivou depois a Inconfidência Mineira”.
O Quinto não era uma taxa per capita, coisa nenhuma. Quinto era a retenção de 20% do ouro em pó ou folhetas levado às Casas de Fundição. Em nível interno de Minas, ninguém perdia nada, pois, o valor do ouro em barra compensava em réis a perda desse seu quinto in natura. A oitava do ouro em pó valia 1$200 réis. A do ouro já quintado, em barra, R$-1$500 réis. Vide Verbete nº. 4655 do IMAR/MG, Cx. 57, Doc. 50, do AHU.
Os homens-bons, principalmente os banqueiros, agiotas, cobradores de impostos, mercadores de escravos e fornecedores do comércio, no entanto, mandavam para fora das Minas a maior parte do ouro in natura, pois, fora das Minas Gerais não havia essa diferença cambial que eles, portanto, lucraram sempre.
Por isto é que o dispositivo Derrama, do sistema de Casas de Fundição, previa que se, ao final de cada ano, os quintos arrecadados não atingissem 100 arrobas, a diferença deveria ser apurada e rateada entre os homens-bons, ricos, das quatro comarcas da Capitania das Minas Gerais.
Entranhados ao poder político, esses homens-bons, que eram quase-sócios do Estado, conseguiram sempre empurrar com a barriga e adiar as derramas. O Marquês de Pombal sempre os protegeu.
A partir do reinado de Maria I, iniciado em 1777, foi que a casa começou a cair para os homens-bons das Minas Gerais. Em 1788, época das primeiras notícias da Inconfidência Mineira, a coisa se complicou para os ricos “sócios” do Estado mineiro.
Após a hecatombe da Capitação, os novos representantes de Vila Rica[1], apesar de sugerirem o aumento de todos os outros impostos para compensar a extinção da capitação (muitos deles eram contratadores da cobrança desses impostos) não eram contra as casas de fundição. Eram, isto sim, contra a derrama, isto, por saberem que “Manda Vossa Majestade (…) que a derrama se faça à proporção dos bens”, ou seja, “(…) pagando cada um à proporção do que tiver (…)”, pois, como ricos que eram, achavam “que a derrama há de causar maior estrago que a própria capitação, por ser raio que com maior violência cai sobre os homens ricos, e onde não há estes não podem viver os pobres[2].
Erraram, os homens-bons de Vila Rica. Os brancos pobres e pretos forros não deram a mínima importância à iminência da Derrama, pois, todo mundo sabia que só quem tivesse patrimônio é que entraria no rateio à proporção de seus bens ou riqueza.
Portanto, o texto da Wikipédia era mesmo ignorante da História quando afirmava também que:
Correspondia a uma pesada taxa cobrada da população e que, durante o governo do secretário de Estado (espécie de primeiro-ministro) Sebastião José de Carvalho e Melo (ou Marquês de Pombal), foi fixada em 100 arrobas anuais (1 arroba = 32 arráteis = ~ 15 quilos), ou seja, 1500 kg aproximadamente. Como não raramente, o quinto não era pago integralmente e os valores não pagos eram acumulativos, era preciso intensificar a cobrança, confiscando-se bens e objetos d’ouro. Essa prática de cobranças de valores atrasados era chamada de derrama”. O texto atual da Wikipédia ainda mantém pequena parte dos equívocos acima.
Pombal era mais que
primeiro-ministro” de um hodierno regime parlamentarista. Ele era sim um ministro plenipotenciário do Reino e do Ultramar de Dom José I, o rei fraco.
Além disto, o quinto NÃO era uma “
taxa cobrada da população”. Era a retenção de 20% aplicada ao ouro fundido em barras, sem qualquer prejuízo para o comércio interno. Portanto, como se vê acima, é muita ignorância sobre o que era o Quinto e o que era a Derrama. Nota zero para o texto anterior da Wikipédia.
O errado texto da Wikpédia também afirmava que:
A derrama começou a ser realizada em 1751”. Errado. O sistema de cobrança dos quintos por Casa de Fundição, com o dispositivo coator da Derrama, é que foi implantado em 1751, sucedendo ao Sistema da Capitação que tinha levado as Minas Gerais à total miséria, sem se falar no grande genocídio praticado por Gomes Freire em 1746, que provocou a extinção do Imposto Capitação, em 1750. Ou se extinguia a Capitação, ou Portugal perderia não só as Minas, mas a própria Colônia, afirmou o próprio Marquês de Pombal em suas razões para extinguir a Capitação. Vide verbete 4612 do  do IMAR/MG, Cx. 57, doc. 22, de 20.11.1750.
Ao final da capitação (1735-1751) e ante o desastre que causara às Minas, os próprios camaristas de Mariana, em nome do povo, em carta ao rei, no ano de 1751, vieram a dizer e a afirmar que “concluímos que não há modo mais justo para Sua Majestade arrecadar o seu quinto do que as casas de fundição[3].
Também não é verdade que a Derrama, “A partir de então, foi acionada algumas poucas vezes”. Somente em 1763/1764 é que o governador Luiz Diogo Lobo da Silva forjou uma falsa Derrama para induzir os homens-bons das Minas Gerais a apoiá-lo na consumação do esbulho perpetrado por Gomes Freire que, em 1748, extinta a Capitania de São Paulo, usurpou-lhe o atual Sudoeste Mineiro. Vide Verbete nº. 6722 do IMAR/MG, Cx. 83, Doc. 25 do AHU.
Também é equivocada a anterior assertiva da Wikipédia de que:
Depois de se realizar um censo em que se indicava os bens e rendas dos moradores, funcionários do governo português, violentamente recolhiam uma proporção das rendas pessoais”.
Os sujeitos passivos da Derrama NÃO eram todos os “moradores”. Eram apenas os homens-bons, donos de patrimônio.
Na falsa derrama de 1763/1764, o governador Luiz Diogo diz que contribuiu com parte de seus salários. Porém, ele roubou muito ouro da gente pobre que acossou na caminhada que fez sobre o atual Sudoeste de Minas. Quem mais contribuiu, segundo esse governador, foram os vigários das paróquias mineiras e o cabido em geral. Mas, não a Igreja, que entrou com uma ação para não pagar nada.
Dizia ainda o errado artigo anterior da Wikipédia que:
Com o esgotamento das jazidas pela exploração intensiva, em 1763 a arrecadação de ouro deixou de atingir a cota fixada. Naquele ano, pela primeira vez, as autoridades portuguesas decretaram a derrama”.
Na verdade, a falsa Derrama de Luiz Diogo não só foi a primeira, como foi a ÚNICA que ocorreu nas Minas. De resto, os homens-bons sempre adiaram, emendaram e repactuaram, empurrando tudo com a barriga até 1788, quando a casa começou a cair para eles que, durante tanto tempo, contrabandearam para fora das Minas o ouro que arrancavam do povo pobre, seja, com suas mercadorias vendidas pela hora da morte, seja, pelos empréstimos a juros escorchantes, mas, principalmente, pelos impostos que a força de armas sempre conseguiram arrancar do povo pobre. As histórias dos malditos dizimeiros, capangas dos contratadores dão mostras dessa violência.
Realmente, não se tem notícia de qualquer inadimplente em particular, de qualquer imposto. Todo mundo pagava. A maioria das pessoas NADA devia ao fisco. Portanto, nunca existiu qualquer revolta fiscal na época da Inconfidência Mineira.
As 100 arrobas anuais de ouro, porém, dificilmente voltaram a ser atingidas. Mesmo os outros impostos (p. Exemplo dízimo, entradas, subsídio voluntário, etc.) que os homens-bons, como cobradores terceirizados do reino, arrancavam do povo… nem estes eram recolhidos integralmente aos cofres reais.
Muitos desses homens-bons, a exemplo de Joaquim Silvério dos Reis, Domingos de Abreu Vieira, João Rodrigues de Macedo, Inácio Correia Pamplona e muitos outros, eram contratadores ou “sócios-terceirizados” do Estado. Todos eles passaram a se dizer amigos de Tiradentes. Coitado do nosso Alferes, nobre e patriota. Houve DOZE delações, inclusive desses pilantras, contra Tiradentes. Esses delatores nunca foram inconfidentes de verdade. Entraram para as confabulações – é de se interpretar – de olho nas benesses e recompensas da “Delação Premiada” da época. Silvério dos Reis denunciou primeiro. Os demais denunciantes denunciaram atrasados e em vão. Nada ganharam. Muitos, porém, viriam a conseguir uma vaga no chamado Mausoléu dos… Inconfidentes?
Pombal havia “privatizado” quase tudo. Até a cobrança dos vários impostos foi “privatizada” ou “terceirizada”. Portanto, os homens-bons ricos eram semelhantes a “sócios” do Estado. Natural, pois, que através da Derrama, esse mesmo Estado impusesse a eles um maior zelo pela arrecadação dos quintos do ouro.
Tiradentes, sentindo que seus amigos, na verdade, não queriam fazer revolução nenhuma, foi procurar o povo. Passou a dizer aos pobres que a derrama iria recair “por cabeça”, sobre todas as pessoas: “Já se decidiu cobrar a derrama, à razão de oito oitavas por cabeça[4]. Esse argumento era falso, mas era bem forte, pois trazia à lembrança dos brancos pobres e pretos forros a hecatombe da Capitação. Porém, o fato de estar, Tiradentes, ligado a contratadores e cobradores de impostos o desacreditou totalmente perante o povo pobre. Tanto que nenhum preto forro aderiu a sua Revolução. Foi uma pena, pois os pretos forros, na época da Inconfidência, representavam mais de 70% da população livre.
Portanto, é erradíssimo dizer que o POVO comum, principalmente os brancos pobres e os pretos forros, estivessem devendo qualquer imposto na época da Inconfidência Mineira. Mesmo porque, os quintos não eram um imposto pessoal, muito menos per capita como dizia o anterior artigo da Wikipédia.
A lição que se deve tirar da Inconfidência Mineira é a de que o Estado não deve ter sócios privados. Privatição da coisa pública sempre foi, é e será sinônimo de corrupção. Auditar o privado é fácil. Auditar o público é complicado. Auditar o público-privado é impossível. Quem paga para ver, pode pagar muito caro.

Portanto, malungo quilombola, sempre que alguém falar bobagens sobre a Derrama, arria o pau na mentira e mostre a verdade. A nossa desgraça foi a Capitação e não as Casas de Fundição e sua Derrama. Qualquer dúvida, mande-nos um e-mail e lhe enviaremos ou indicaremos os documentos que provam tudo o que dissemos acima.
Essa ignorância sobre os Quintos e a Derrama não é privilégio da Wikipédia. Entre os políticos, por exemplo, Guilherme Afif Domingos é um dos que mais falam coisas erradas sobre a Derrama. CONFIRA. Os conceitos e as definições acima afirmados, com as precisas indicações documentais  foram mencionados pela primeira vez em um livro, in Quilombo do Campo Grande – A História de Minas que se Devolve ao Povo, publicado pela Editora Santa Clara, Contagem-BH, em agosto de 2008.

Artigo do mesmo autor: “Tiradentes e a Monarquia – Contradições de Ouro Preto

* IMAR/MG, é o livro Inventário dos Manuscritos Avulsos Relativos a Minas Gerais Existentes no Arquivo Histórico Ultramarino (LISBOA), 3 volumes, publicado pela Fundação João Pinheiro em 1998, como suporte de pesquisas aos 54 CDs colocados a venda pelo APM. A UnB, em 2008, passou a publicar pela Internet (de graça) os documentos de Minas de quase todas as demais Capitanias do Brasil-Colônia.

[1] Apoiados pelos ricos homens-bons de São João Del Rei, Códice Costa Matoso, p.527-529.
[2] Camaristas de Vila Rica, em 1751, in Códice Costa Matoso, p. 520, 524 e 525.
[3] Camaristas de Mariana, em 1751, in Códice Costa Matoso, v. 1, p. 514.
[4] Tiradentes – A Inconfidência Diante da História, v. 2.1, p. 393-394.