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Mulheres Negras – Rita de Souza Lobo

Conheça a belíssima história desta negra que foi cativa do amor de seu amante e de suas filhas. De forra passou-se por escrava, por amor de um homem branco. Quando este morreu e seus filhos quiseram roubar as filhas de Rita, como se escravas fossem, ela lutou até em Lisboa para libertá-las, sem nunca desistir.

Verbete n. 8322 do IMAR-MG, Cx. 115, Doc. 60, do AHU – 10.11.1779[1]

Diz Rita de Souza Lobo, preta[2] forra e moradora em Vila Rica do Ouro Preto que, sendo escrava de João de Souza Lobo e sua mulher Francisca Nunes, lhe passaram, estes, carta de manumissão e liberdade[3] no ano de 1743[4], não só pelo amor que lhe tinham senão porque receberam da suplicante em prêmio uma lavra de ouro[5] que naquele tempo valia 192$000[6] e, dali por diante, entrou ela a tratar-se como liberta[7] que ficou sendo, indo para onde queria e morando aonde lhe faria maior conta[8], sem contradição ou impedimento de pessoa alguma; sucedeu porém que a suplicante, pela sua fragilidade, se meteu com Francisco Miz Castelhado, em cuja casa e companhia esteve muitos anos vivendo em trato ilícito[9], mas como este não queria que o pároco soubesse daquela mancebia[10], dizia e mostrava no exterior[11] que a suplicante era sua escrava e por tal era reputada dos vizinhos e do mesmo pároco, o que a suplicante não contradizia, não só pela sua ignorância, simplicidade, senão porque se julgava segura pela carta de alforria[12] que tinha; e no transcorrer do tempo teve cinco filhas, duas pardas[13], Ana e Francisca, que o tal seu amásio reconheceu por suas e como tais as mandou para um convento deste reino[14]; e três pretas crioulas[15], Maria, Efigênia e Escolástica; e suposto que o pároco declare nos assentos dos batismos destas, delas eram cativas de dito Francisco Miz, não era por na verdade o fossem, mas sim por que ele estava na inteligência de que a suplicante era escrava[16]; mas o tal Francisco Miz sempre a tratou como liberta porque conhecia que o era e, consequentemente, as ditas três crioulas suas filhas; de sorte que, falecendo da vida presente, com seu testamento, não falou uma só palavra na suplicante e ditas crioulas[17]. Contudo, Manoel Miz, filho e herdeiro do dito Miz Castelhado, sem embargo de conhecer claramente esta indefectível verdade, deu a inventário[18] as ditas três crioulas como se elas fossem cativas do dito seu pai e, como tais, estão elas gemendo debaixo da escravidão há mais de treze anos[19]; porque como são rústicas, pobres e miseráveis, não têm quem lhes valha e fale por elas, ouvi a suplicante já como sua mãe, requerer que como forra livre – e o parto segue o ventre[20] – não tinham as tais crioulas a mínima sujeição a cativeiro, por nasceram depois da suplicante estar forra[21], mas procurando a sua carta de liberdade a não achou, ou por se ter perdido, ou furtado[22]; mas supriu esta falta a uma justificação[23] de[24] cinco testemunhas “confeotel”[25] que produziu com citação dos ditos seus senhores João de Souza Lobo e sua mulher, contra a qual lhes não opuseram coisa alguma[26], como tudo consta judicialmente por papéis indubitáveis, substanciados no documento incluso: mas não tem requerido nada pelo justo receio de que lhe suborne a justiça[27].

Avista do que recorre a Vossa Majestade para que, como Pai e Senhor de seus vassalos, queira livrar as miseráveis filhas da suplicante do injusto cativeiro em que se acham retidas, pois só a Augusta e Paternal provisão de Vossa Majestade lhe pode valer, fazendo lhes administrar justiça sem suborno que naquelas terras é tão usual, mandando-lhes passar ordem para que o desembargador provedor da Fazenda Real das Minas Gerais e, em sua falta ou impedimento, o desembargador intendente de V. Rica ou o dr. Juiz de fora de Mariana [por lhe ser sujeito o ouvidor daquela comarca, por “rervent.”[28] particulares], a vista dos documentos jurídicos que a suplicante lhe apresentar, faça pôr logo em liberdade as ditas suas três filhas crioulas Maria, Efigênia e Escolástica, mandando que o tal Manoel Miz lhes pague executivamente os jornais[29] que lhes arbitrassem dois louvados de sua consciência, aos quais se faça a conta desde o tempo do injusto cativeiro delas, deferindo-lhes o dito ministro breve e sumariamente, de plano, só pela verdade sabida sem outra figura de juízo, evitando-se assim demandas ordinárias que é e que o suplicado desejar para eternizar a decisão desta dependência, que como a suplicante e suas filhas são pobres, miseráveis, rústicas e ele mais poderoso e com amigos, com facilidade lhes subornará a sua justiça, buscando para isso aqueles meios que lhe subministrar sua malícia.

Para Vossa Majestade que por sua real grandeza haja por bem fazer-lhe a graça que pede[30].

Dita Rita de Souza Lobo, pede para requerer (…) lhe é necessário que qualquer tabelião a quem apresentar os documentos inclusos lhe passe deles por certidão, em pública forma o que eles lhe apontar, tornando a entregar os próprios à pessoa que lhos apresentar.

Saibam quantos este público instrumento dado[31] e mandado passar em pública forma do ofício de mim tabelião virem e que sendo no ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil, setecentos e setenta e quatro[32], aos treze dias do mês de maio[33] do dito ano, nesta Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, em auriculoris[34] de mim tabelião ao diante nomeado, aparecendo presente Rita de Souza Lobo, preta forra, moradora nesta Vila que reconheço pela própria que dou fé; e por ela” , etc. etc [35].

É bem provável que Rita tenha conseguido o seu intento em Lisboa[36]. É provável que tenha sido assistida pelas filhas pardas freiras em algum convento de Lisboa. Dificilmente perderia esta ação. Porém, não constam os documentos seguintes, com a decisão judicial e administrativo-real.

-o-

[1] Documento manuscrito decifrado pelo malungo TJ especialmente para o mgquilombo.
[2] No caso, trata-se de crioula ou cabra, pois três de suas filhas foram classificadas como crioulas; fosse a mãe uma parda, suas filhas, no caso, seriam cabras.
[3] Carta de alforria; instrumento público lavrado em cartório cível, com a presença de duas testemunhas.
[4] Neste período (1735/1751) vigorou o sistema tributário da capitação, onde muito senhor, não tendo como pagar esse imposto pelo seu escravo, preferiu vender-lhe a alforria – por várias formas de pagamento – do que perdê-lo para o fisco e ser preso por crime de sonegação fiscal. Cada escravo, obrigava o dono ao recolhimento semestral de 2,15 oitavas (anual, 4,3 oitavas, ou sejam 15,43 gramas de ouro).
[5] Uma mina de ouro em céu aberto, geralmente regatos de água ou local próximo onde se acumularam cascalhos de primeira lavagem.
[6] 160 oitavas de ouro, sendo, cada oitava, 3,586 gramas, totalizando 576,76 gramas de ouro.
[7] Liberta é sinônimo de forra, alforriada. Livre é quem já nasceu de ventre livre.
[8] Vivendo por conta própria, tendo que comer, é provável que essa negra tenha continuado a trabalhar em lavras, o que significa que pagou, por si, o imposto da capitação até o 1o. semestre do ano de 1751. Tornou-se mesmo uma cidadã da capitania mineira.
[9] Em vida de casados, proibida pela Santa Madre Igreja sem a bênção ou sacramento matrimonial.
[10] Mancebia, no caso, é sinônimo de concubinagem.
[11] Sociedade, fora do âmbito de seu lar, portas afora.
[12] Documento particular registrado ou público lavrado em cartório.
[13] Pardas, significa mãe negra e pai branco.
[14] Esse costume era tamanho que mais tarde seria proibido pelo rei que se mandassem mulheres para conventos em Portugal.
[15] Crioulas, filhas de pai e mãe que fossem negros puros, ou sejam, filhas de Rita com pai crioulo ou negro estrangeiro.
[16] Realmente, mãe escrava, segundo a lei, só poderia gerar filhos ou filhas escravas.
[17] O problema é que o testamento, geralmente, era lavrado pelo padre; esse documento depois de pronto, era levado ao cartório cível, onde era registrado, costurado, lacrado e arquivado.
[18] Nos inventários, esta era a ordem dos bens: oiro, cobre, bronze, ferro, raízes (terras), escravos negros e, até 1755, índios, bois, alimárias, etc.
[19] A petição é de 1779, portanto, a escravização via inventário teria ocorrido a partir de 1766.
[20] Nascendo de ventre livre, ou sejam, de pretas forras, índias a partir de 1755, ou brancas, mesmo que o pai fosse escravo, o filho ou filha seria livre. Nascendo de ventre escravo, mesmo que o pai fosse um branco de qualquer estatus, o filho/a seria escravo/a, pertencente ao dono da escrava.
[21] Durante ou depois do ano 1743.
[22] Além do furto do papel, teria ocorrido o “sumiço” de seus registros também no cartório civil.
[23] Peça probatória produzida em cartório, a exemplo da certificação e da atestação, confirmada por cinco ou seis testemunhas e lavrada em instrumento público.
[24] Aqui começa o microfilme Rolo 103, pág. 203-a.
[25] Não foi possível decifrar a palavra, documento borrado ou comido de traças.
[26] Isto, significa que os ex-senhores confirmaram a alforria concedida.
[27] O receio é fundado, visto que se não se encontrou cópia da carta de alforria em cartório foi porque deve ter desaparecido, assim como o livro em que teria sido lavrada ou registrada na data da manumissão.
[28] Não foi possível decifrar a palavra, documento borrado ou comido de traças.
[29] Aluguel devido pela utilização de escravo alheio, ou salário de trabalhadores livres/forros.
[30] Aqui começa o microfilme Rolo 103, pág. 203-b.
[31] Aqui começa o microfilme Rolo 103, pág. 204-a.
[32] Ano em que as provas judiciais foram produzidas em cartório de Ouro Preto-MG.
[33] Note-se a data, “treze dias do mês de maio”, em que, no ano de 1888, outra mulher, a Princesa Isabel assinaria a Lei Áurea.
[34] Provavelmente, significa de orelha, de ouvido; verbalmente.
[35] Até o final pg. 208, itens de quesitos para testemunhas; declarações e atestações que firmam a petição de Rita.
[36] Onde, (1779) cinco anos depois de ter produzido as provas em Vila Rica (1774) fez as petições acima transcritas.