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Histórias, Causos e Lendas –X- Lixo Ficcional na Historiografia

Histórias, Causos e Lendas –X- Lixo Ficcional na Historiografia
Há histórias ou causos, porém, de que precisamos nos livrar; pois são falsos. São inventivas, criadas – pois nunca provadas – pela pena dos brancos e inculcadas como se lenda fossem. É o caso do tal Chico Rei a que venho em franca contenda há muitos anos.

Seguindo o exemplo de Carmo Gama[1], o monarquista Diogo de Vasconcelos[2] também resolveu trair o dever de fidelidade e fidedignidade à História em seu livro “História Antiga de Minas”, que publicou no mesmo ano 1904. Melhor que comentar é transcrever as infidedignas  informações lançadas em nota de rodapé pelo autor:

Os salteadores apreendiam ou compravam na África tribos e nações inteiras, gente em vários graus de sociabilidade, embora rudimentária e além de muitos exemplos para prová-la, tivemos o que deu lugar a legenda tão bizarra, quão verdadeiramente poética do Xico Rei, que dominou Vila Rica. Esta figura nobre de um preto, cuja vida acidentada aqui finalizou, imensa luz derrama aos painéis daquela época sombria. (19)[3].

Eis a nota de rodapé nº(19):
19 Francisco foi aprisionado com toda sua tribo, e vendido com ela, incluindo sua mulher, filhos e súditos. A mulher e todos os filhos morreram no mar, menos um. Vieram os restantes para as minas de Ouro Preto. Resignado à sorte, tida por costume na África, homem inteligente, trabalhou e forrou o filho; ambos trabalharam e forraram um compatrício; os três, um quarto, e assim por diante até que, liberta a tribo, passaram a forrar outros vizinhos da mesma nação. Formaram assim em Vila Rica um Estado no Estado; Francisco era Rei, seu filho o Príncipe, a nora a Princesa. Possuía o Rei para a sua coletividade a mina riquíssima da Encardideira ou Palácio Velho. Antecipou-se este negro a era das cooperativas, e precursou o socialismo cristão. Como naquele tempo toda irmandade estava unida à idéia religiosa de um santo patrono, tomou esta o patronato de Santa Efigênia, cuja intercessão foi-lhes tão útil; e desse exemplo nasceu o culto ardente, que se volta ainda à milagrosa imagem do Alto da Cruz. Os irmãos erigiram um belo templo que existe sob a invocação do Rosário. No dia 6 de janeiro o Rei, a Rainha e os Príncipes vestidos como tais eram conduzidos em ruidosas festas africanas à igreja para assistirem à missa cantada e depois percorriam em danças características, tocando instrumentos músicos indígenas da África, pelas ruas. Era o Reinado do Rosário, festas que se imitaram em todos os povoados das Minas. Vem também daí a nomenclatura dos mesários do Rosário em todas as irmandades de pretos entre nós. No Alto da Cruz ainda se vê a pia de pedra na qual as negras empoadas de ouro lavavam a cabeça para deixá-lo naquele dia por esmola ou donativo”.       

Voltando ao texto, o descendente daquele outro Diogo que vilipendiou os restos mortais de Tiradentes[4]arremata as infidedignas informações:

A legenda do rei africano é na história semelhante a um oásis florido e suave, em que descansamos deste melancólico arneiro, que sua raça infeliz encharcou de suor, de sangue e de lágrimas, (…)[5]

e, assim, muda de assunto e NADA MAIS fala sobre o tal “Xico Rei”.
Como se vê acima, Diogo de Vasconcelos confundiu reisado (festa dos reis magos, em 6 de janeiro), com reinado, festa de Nossa Senhora do Rosário, celebrada na primeira ou segunda semana de agosto[6]que, hoje, para possibilitar o acesso dos mineiros que vivem fora de suas cidades, foi transferida para final de julho de cada ano. O erro de Diogo é grave, uma vez que as festas de Santos Reis, celebradas em 06 de janeiro, só se firmaram a partir do final do século XIX, inexistindo notícias das mesmas nas Minas dos anos setecentos. Ora, como poderia um autor que faz confusão entre a data da festa de Santos Reis e a data da festa de Nossa Senhora do Rosário, guardar tão bem e se lembrar de tantos detalhes da alegada tradição ouropretana sobre o tal Chico Rei? 

Diogo fala da tal “legenda” como se ela fosse pública e notória. No entanto, nunca encontrei ninguém – nem mesmo de Ouro Preto – que tivesse dela tomado conhecimento, a não ser – direta ou indiretamente – pela própria não-provada notícia que o acadêmico piadista da Faculdade de Direito de São Paulo[7]

inculcou no seu livro “História Antiga de Minas”. Aliás, o próprio autor deixou de mencionar qualquer depoimento de contemporâneos que pudessem dar alguma credibilidade à sua ficção. Diogo, como se sabe, era um tremendo gozador; talvez sua intenção tenha mesmo sido a de nos fazer a todos de “marrecos”[8].

A nota de rodapé do monarquista frustrado fez enorme estrago em nossa historiografia. Dezenas de autores de respeito, pensando que – também nesse caso – Diogo merecesse respeito, reproduziram sua nota de rodapé em livros e mais livros.

Em 1966, o ROMANCISTA Agripa de Vasconcelos veio a publicar pela Editora Itatiaia o seu livro “Chico Rei”, de 247 páginas. Diferentemente de seus outros romances-históricos, neste, Agripa não menciona qualquer bibliografia e a única referência que faz é mesmo à nota de rodapé do Diogo de Vasconcelos. É, sem dúvida, mera ficção que teve como base a nota de rodapé do Diogo, segundo consta, seu ancestral colateral.

Muita gente tem chamado Agripa de Historiador, quando ele mesmo sempre se disse apenas um romancista.
A desinformação se multiplicou. Livros e mais livros foram escritos reproduzindo a lenda nunca provada. “Chico Rei” virou tema de Escola de Samba, virou filme; o comércio de Ouro preto ampliou e deu corpo à não-história e não-lenda e passou, sem se dar conta, a desinformar os turistas e a faturar lucros monetários, sem aferir a não-história e não-lenda. 
O próprio Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, sob a gestão de seu presidente Miguel Augusto Gonçalves de Souza[9], na edição comemorativa de 22 de abril de 2000 de sua Revista (Brasil – 500 anos), Vol. nº XXIII, fez publicar o artigo do confrade Rogério de Alvarenga[10], intitulado “Um Escravo Rei”, que sustenta falsa fidedignidade HISTÓRICA no ROMANCE de Agripa e nas citações que outros quatro autores fizeram da nota de rodapé do Diogo de Vasconcelos.

Em 20.05.98 tivéramos também uma reportagem na Revista “ISTO É”[11] , onde um repórter, através de um historiador local – que tinha como fonte principal o livro do Agripa de Vasconcelos – disse ter encontrado, em Pontinha-MG, nada mais nada menos, que os descendentes de Muzinga, o filho do Chico Rei. Mandei dezenas de correios eletrônicos para essa revista, mas ela nunca respondeu nada. Essa reportagem, a meu ver, visava apenas a excluir os negros locais dos favorecimentos legais que teriam – na posse das terras onde moravam – caso fossem remanescentes de quilombos. Isso foi um desserviço à Comunidade Quilombola de Pontinha.

Tenho convicção de que a “criação” do Chico Rei visou não só esconder o Rei Ambrósio, personagem REAL da História de Minas, mas também, criar para os negros um exemplo de que, negro, para “dar certo”, precisa ser muito humilde e obedecer as sábias regras do jogo, criadas e impostas pelo branco.
Entendo que tão importante quando preservar as histórias e causos das comunidades negras é destruir as falsas lendas, onde, SMJ, a mais divulgada atualmente é a do tal Chico Rei. Alguém precisa pôr os pingos nos “is” também nas inverdades que se têm escrito e filmado sobre a parda Chica da Silva[12], se bem que esta, mãe de 15 filhos, racista cruel e inimiga figadal de todos os pretos, pelo menos existiu.

2003 © Todos os direitos reservados a Tarcísio José Martins

[1] Autor do folhetim “Quilombolas, uma Lenda Mineira Inédita”, publicado como se fosse HISTÓRIA…  pela Revista do APM!

[2] Patrono da Cadeira n. 9 do IHGMG, hoje ocupada pela sócia efetiva Eliana Nelson Silviano Brandão Ahouagi.

[3] História Antiga de Minas, Edição de 1974, Itatiaia, 2º Vol., pgs.162/163.

[4] Revista do APM, Ano I, Fasc. 3, 1896, pgs. 405/415.

[5] História Antiga de Minas, Edição de 1974, Itatiaia, 2º Vol., pg. 163.

[6] A festa começa a 14 de agosto, segundo “Negros e Quilombos em Minas Gerais”, pgs. 168/169.

[7] Formado em 1867.

[8] “Marreco”, é o nome do burro em que Diogo foi montado para estudar na Escola de Direito de São Paulo, ao qual fazia discursos e contava piadas, segundo contou Basílio de Magalhães; voltou montado nele para as Minas; afinal seu burro, sendo ele um monarquista, sempre fomos nós mesmos, o povo mineiro.

[9] Titular da Cadeira nº 58, do IHG-MG, patrono Marquês de Queluz.

[10] Titular da Cadeira nº 29 do IHG-MG, patrono Júlio Ribeiro.

[11] Matéria “Os Herdeiros de Chico Rei”, revista de 20.05.98.

[12] O primeiro romance sobre esse personagem TAMBÉM é de Agripa de Vasconcelos.