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JOSÉ INÁCIO MARÇAL COUTINHO

JOSÉ INÁCIO MARÇAL COUTINHO

PRETO FORRO SABIDO, LETRADO E POLÍTICO

(*) Artigo escrito em 23 de fevereiro de 2004 (então, inédito) e atualizado em março de 2020.

Tarcísio José Martins.

            A história de José Inácio mostra-nos como a historiografia brasileira conhece pouco a liberdade de que desfrutavam os negros forros e livres nas Minas Gerais do século XVIII. Coutinho, com toda a sua cultura, pode ser comparado ao personagem central do romance Sesmaria, de Tarcísio José Martins, Francisco Adão. Ambos eram dotados de uma inteligência invejável, entretanto diferenciavam-se quanto ao caráter: enquanto o primeiro usava sua capacidade no intuito de servir aos brancos escravocratas; Francisco lutava ao lado dos negros.

         Havia, no Brasil-Colônia, os pretos (negros, crioulos, cabras, mulatos, cafuzos, etc.) livres, ou seja, nascidos de ventre livre, mesmo porque grande número de reinóis que se diziam “ilhéus”, na verdade vieram de África com suas esposas ou concubinas pretas, às quais, para dar um status diferenciado, atribuíam o título de “negras minas”, mesmo não sabendo, estas, falar uma única palavra que fosse em qualquer dialeto sudanês, pois muitas delas eram, na verdade, naturais de São Tomé, Príncipe e outras ilhas, sem qualquer ascendência sudanesa conhecida ou identificada.

         O paradoxal e excessivo número de “pretas minas” livres ou forras descoberto e apontado por Júnia Ferreira Furtado em seu livro “Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes” é refutado pela quase inexistência de vocábulos advindos de dialetos sudaneses, tanto no falar regional como na toponímia de todas as Minas Gerais. Ora, língua se aprende com a mãe. Ao contrário do que constatou Júnia, a presença dos vocábulos bantu tanto em nosso falar mineiro, como em nossa toponímia denunciam esse equívoco. Minas Gerais é bantu; as estatísticas feitas com os números coletados na época provam isto. Identificam-se, no entanto, uma evidente mistificação e preconceitos antigos, pois os próprios portugueses tinham menos vergonha de se confessar misturados com as tais “pretas minas” do que com as pretas de etnia bantu, as verdadeiras Sabinas da etnia mineira. Precisamos estudar melhor esta questão. Porém, os pretos livres eram mesmo muito raros nas Minas dos anos setecentos. Abundantes como nunca, no entanto, eram os forros.

A maioria dos forros eram pretos que, apesar de terem nascido escravos, conseguiram a alforria, a liberdade, seja por compra, seja por prêmio de trabalho na mineração, seja por doação, geralmente paterna, o que era mais comum aos mulatos; no caso das pretas, a alforria era conseguida muito mais pela concubinagem e até pelo casamento com brancos ou pretos forros. Essas pretas forras se tornaram em maioria dos cabeças de fogo ou chefes de família ao final dos anos setecentos.

         O grande equívoco de nossa historiografia, como se vê,  é centrar estudos somente no negro escravo e achar que estudou e conhece o problema do negro e da negritude como um todo. O equívoco é tamanho que minha sugestão é de que nos esqueçamos de tudo que aprendemos sobre negros em Minas Gerais e busquemos, nas fontes primárias, o reaprendizado de tudo.

Um dos grandes mistérios da historiografia da Inconfidência Mineira é a quase inexistência da participação ativa dos forros nesse movimento libertário das Minas. Quem ler meu livro “Quilombo do Campo Grande – a História de Minas Roubada do Povo[1]” poderá atinar as razões da ausência dos forros na Inconfidência Mineira.

         Ora, os pretos forros sempre foram a maioria entre a população livre[2]. Aliás, foi graças a esses forros que os reinóis derrotaram os paulistas, consolidaram seu poder nas Minas Gerais e em toda a Colônia[3]. Graças aos forros, aliás, é que os reinóis conseguiram exterminar todas as revoltas quilombolas e manter o regime escravista até 13 de maio de 1888, sendo, o Brasil, o último país do mundo a libertar seus escravos.

         Tratamos, aqui, de um personagem até então desconhecido, chamado José Inácio Marçal Coutinho – citado pela primeira vez no site www.mgquilombo.com.br em fins de 2003 – cujas notícias encontramos nos documentos do Arquivo do Conselho Ultramar,  graças ao acesso facilitado pelo Arquivo Público Mineiro – APM, seja divulgando os verbetes de cada documento em “Inventários dos Manuscritos Avulsos Relativos a Minas Gerais no Arquivo Ultramarino (Lisboa)”, três volumes, Fundação João Pinheiro – 1998[4], seja, digitalizando e distribuindo esses documentos a preço módico através da coleção composta de 54 CD-ROM, chamada “Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania de Minas Gerais (1680 – 1832)” do “Projeto Resgate”.

         Ao trasladar os seis principais documentos emitidos ou provocados pelo nosso personagem, apenas atualizamos a ortografia dos mesmos. Adotamos o sistema de concatenar e conectar os textos extraídos dos próprios documentos, cortando-lhes as redundâncias e a burocracia forense com “(…)” e citando-os em itálico e entre aspas. Dentro desses textos fizemos glosas na forma de notas de rodapé explicando, ratificando ou contestando o seu conteúdo de maneira a dar mais fontes ao leitor, sem interferir no entendimento subjetivo dos textos.

         José Inácio Marçal Coutinho, nos documentos encontrados se dissera “um homem ágil, prático e judicial”, como “muitos crioulos e pardos, que vivem em muitos auditórios[5]. Dissera ainda que “sempre se tratou, com limpeza de mãos, segredo às Justiças, em todo o tempo que nos auditórios e tribunais das Vilas, cidade e continentes da dita Capitania, ocupou o emprego de escrevente com conhecida prática do judicial[6].

A partir de setembro de 1725 o Conselho Ultramar teceu legislação onde se proibiu radicalmente que quem tivesse sangue impuro até a quarta geração pudesse ocupar cargos nas câmaras das vilas, ouvidorias e justiças[7]. A partir de 1748, encontram-se muitos documentos demonstrando que esta decisão, efetivamente, foi implementada afastando os forros comuns dessas áreas reservadas aos homens-bons[8].

         Realmente, Coutinho teria abandonado a profissão acima, pois revelou que ultimamente era “o capitão da companhia chamada a dos forros, criada há mais de 30 anos na comarca do Rio das Mortes[9].

         Como se vê, nosso personagem escapou do lugar comum dos forros que desejassem ser “autoridades” que era se tornarem capitães do mato, instituição odiada pelos escravos, pelos forros e pelos próprios homens-bons que, apesar de os utilizar para massacrar os quilombos, deles diziam ser “uns mulatos, ou carijós insolentes e ociosos, quais ordinariamente são os ditos capitães do mato”[10] que inclusive roubavam e delinquiam tanto quanto os quilombolas.

           O cargo de capitão do mato era provido pelo governador da capitania, tendo, o candidato que ter muito boas referências, além de dinheiro (750 réis, segundo Regimento dos Salários e Emolumentos de 1725) para comprar a patente[11]. “Para os ditos capitães do mato e seus pedestres se não admitirá pessoa alguma que deixe de se qualificar com folha corrida, atestação da câmara e informações do capitão-mor ou comandante do distrito a que pertencer o dito ou que for morador ou se quiser alistar (…) aquele que se quiser, digo, que solicitar (…) o exercício com os referidos serventuários se lhe darão pela secretaria desse governo as suas respectivas patentes e portarias particularmente e sem maior despesa sendo preferidos capitães do mato de cada distrito obrigados a apresentar na dita secretaria uma lista de todos os soldados (do mato) de sua respectiva tropa com os mencionados documentos (…) de lei se matricularem em um livro destinado a esse fim, e ficarem responsáveis das desordens que por sua omissão ou falta cometerem na observância de seu regimento (…)”[12]. Na verdade, até escravos poderiam ser nomeados capitão do mato, a exemplo de Amaro Queiroz em 1731[13] e muitos outros, cuja alforria foi conquistada no próprio exercício dessa profissão.

         O cargo de “capitão da companhia chamada a dos forros” exercido por Coutinho era muito mais nobre[14], sendo parte das ordenanças, encarregadas da defesa contra os inimigos externos quanto houvesse necessidade, mas que, a partir da implantação da capitação em 1735 a 1737, fora preparada como tropa-reserva para fazer face aos “inimigos internos” que, segundo Martinho de Mendonça, eram não só os escravos fugidos mais os próprios pretos forros da Capitania.

Essas ordenanças de pé, também chamadas terços de forros, Henriques e Zuavos tinham autoridade muito maior e estavam sempre sendo encarregadas de prender capitães de mato desordeiros, ladrões e descumpridores de seus deveres.

         Essas informações sobre a ficha profissional de Coutinho foram extraídas das próprias petições judicial-administrativas por ele aviadas em Lisboa, para onde viajou em 1755.

         Fora até a Corte para tratar de requerimentos dos crioulos, pretos e mestiços forros das Minas, os quais, pela sua capacidade, o teriam  delegado para os representar perante Sua Majestade em interesses deles, a bem da coroa e do real serviço. Colhido em Lisboa pelo terremoto de primeiro de novembro de 1755, o preto forro se conservou na casa de José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Matos, professo do Hábito de Cristo, com muito bom procedimento, devoção e temor de Deus, do que teve, esse seu amigo, experiência não só na Corte portuguesa, mas também em uma jornada a que o acompanhou à Corte de Madri, fazendo-se digno de estimação, realçando nele não só o fato de saber ler e escrever bem[15], mas ainda “a sua capacidade política[16].

© Tjmartins– 23.02.2004

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NOTAS

[1] Vide também “Quilombo do Campo Grande: História de Minas que se devolve ao povo”, 3ª edição, de 2018.

[2] Vide no MG QUILOMBO o artigo “Tambores do Quilombo Minas Gerais”.

[3] Vide Moema – As Origens do Povoado do Doce, 2a. Edição, pgs. 54/55.

[4] Indicaremos pelo código “IMAR/MG/EAHCUL”.

[5] Auditórios, significa salas de audiência judicial – Verbete n. 5502, Cx. 68, Doc. 66 do AHU.

[6] Verbete n. 6434, Cx. 80, Doc. 26 do AHU.

[7] Quilombo do Campo Grande, pgs. 277/278.

[8] Quilombo do Campo Grande, pgs. 278/279.

[9] Verbete n. 5646, Cx. 69, Doc. 5 do AHU.

[10] Verbete n. 3174, Cx. 40, Doc. 27 do AHU.

[11] Quilombo do Campo Grande, pgs. 87/88.

[12] APM – SC 130, fls.55v e 56.

[13] Negação da Ordem Escravista, pg. 145.

[14] A escolha do capitão de companhia se passava pela indicação de três nomes pela câmara da vila ao governador da capitania que, em nome do rei, mandava passar a patente a ser confirmada pelo rei. Vide “Fiscais e Meirinhos – A Administração no Brasil Colonial”, Arquivo Nacional, Graça Salgado, 1985, pgs. 404/405; idem organograma do poder anexo à contracapa desse livro.

[15] Note-se que Coutinho sabia ler e escrever BEM, como foi atestado pelo seu amigo nobre, por isto grifamos.

[16] Verbete n. 6406, Cx. 79, Doc. 15 do AHU.