Matéria republicada em 2003 e atualizada em 24.02.2019.
Vissungos, Danças e Batuques
Quanto às danças específicas ou comuns das antigas comunidades negras, destacam-se entre elas, sem dúvida, o batuque e seus derivados, como por exemplo, o lundum. Se bem que o Estado de Minas em matéria recente referiu-se a “batuque dos pretos” e o “lundum dos brancos”(!?).
As Cartas Chilenas, para zombar do Fanfarrão Minésio, comparam um local de lazer que o governador criara em Vila Rica ao próprio Quilombo do Pai Ambrósio, onde, depois de falar da iluminação noturna com tigelas de azeite, fala de toda a gentalha e pretos que lá compareciam, da lascívia, da mistura de classes sociais, da mulata em trajes de homem, das danças de lundum e do vil batuque, enfim – na visão do escriba e de seu público – do pecado e da imundície social e espiritual do local.
A iconografia brasileira, mormente através de Spix & Martius, Rugendas e Debret, é rica em imagens dessas danças, sem dúvida de origem africana, mormente dos povos de Angola e de Moçambique.
Dança do Batuque – Rugendas (Brasil 1822-1825)
Os negros de todas as nações, além de pendores para todas as artes, têm o ritmo na alma. Sem ritmo, não há vida. Os comerciantes tumbeiros descobriram isto logo nos primeiros contatos com a África. Quando traziam suas cargas para o Brasil, regularmente levavam os cativos para o convés e os faziam dançar para evitar doenças tais como o banzo que, acometendo um negro, o matava de tristeza.
Também para trabalhar, os pobres escravos lançavam mão do canto e do ritmo para aliviar os seus sofrimentos. Aires da Mata Machado Filho ensinou que:
“Esses cantos de trabalho ainda hoje são chamados de ‘vissungos‘. A sua tradução sumária é o ‘fundamento’, que raros sabem hoje em dia. Pelo geral “dividem-se os vissungos em ‘boiado’, que é o solo tirado pelo ‘mestre’ sem acompanhamento nenhum, e o ‘dobrado’, que é a resposta dos outros em coro, às vezes com acompanhamento de ruídos feitos com os próprios instrumentos usados na tarefa”.
“Alguns são especialmente adequados ao fim e acompanham fases do trabalho nas minas. Outros parecem cantos religiosos adaptados à ocasião, já no exercício consciente de práticas feiticistas, já pelo esquecimento do primitivo significado”[1].
“Os negros no serviço cantavam o dia inteiro. Tinham cantos especiais para a manhã, o meio dia e a tarde. Mesmo antes do sol nascer, pois em regra começava o serviço alta madrugada, dirigiam-se à lua, em uma cantiga de evidente teor religioso”[2].
Dos vissungos, pode-se dizer, originam-se também muitas das tradições dos desafios de repentistas onde, os cantadores, lançando mão até mesmo de recursos mágicos – cantando com a boca na terra, por exemplo – procuravam abafar o canto do grupo adversário.
As festas religiosas das confrarias de negros e pardos não satisfaziam de todo a vontade de cantar, de dançar e batucar; os cantos de trabalho limitavam-lhes a expressão corporal e a criatividade. Além do mais, ninguém é de ferro!
Altas horas da noite, após um duro dia de trabalho, e mais comumente no domingo, com ou sem a autorização do ‘sinhô’, a grande alegria era o batuque.
“De acordo com algumas interpretações a este respeito, alguns senhores permitiam estas ‘distrações’, não por sentimento humanitário ou de respeito à cultura de seus escravos mas, ao contrário, para manter viva a origem africana. Isto significa que ao reviver suas tradições os negros não se esqueceriam de muitas das aversões e disputas. ‘(…) Assim divididos, eles não se arriscariam a um levante em conjunto (…) contra os seus senhores (…)”[3].
Mas foi mesmo nas vendas que o batuque ganhou a sociedade como um todo e criou fama. Má fama: as reclamações mais frequentes eram sobre as desordens e brigas ocorridas nos batuques que sempre foram proibidos, mas que nunca pararam de se realizar, nas vendas. Em algumas vilas, no século XIX, ainda eram proibidos:
“São tão bem proibidas as infames e perniciosas danças a que chamam batuques, ou se façam em público, ou em particular, de dia ou de noite, como opostas aos Dogmas da Nossa Santa Religião, e Moral pública, e pelas terríveis consequências que repetidas vezes tem acontecido com tão desonesto brinquedo: toda a pessoa de qualquer sexo, qualidade ou condição que seja, que se achar compreendida em tais danças será preza por dez dias posto que não seja em flagrante; a mesma pena terá o dono, ou dona da casa em que se fizerem as ditas danças. 1829”[4].
Digno de nota é que, proibido aos pretos e gentalhas, o batuque foi para as altas rodas de Vila Rica, onde, em 1815 era permitido e festejado, consoante anotou o viajante inglês George Wilhelm Freyreiss:
“Entre as festas, merece menção a dança brasileira, o batuque. Os dançadores formam roda e, ao compasso de uma viola, move-se o dançador no centro, avança e bate com a barriga de um outro da roda, de ordinário pessoa de sexo oposto. No começo, o compasso da música é lento, porém, pouco a pouco, aumenta, e o dançador do centro é substituído cada vez que dá uma umbigada; e assim passam noites inteiras. Não se pode imaginar uma dança mais lasciva do que esta, razão porque tem muitos inimigos, especialmente entre os padres. Assim, por exemplo, um padre negou a absolvição a um seu paroquiano, acabando dessa forma com a dança, porém, com grande descontentamento de todos. Ainda há pouco, dançava-se o batuque em Vila Rica numa grande festa na presença de muitas senhoras, que aplaudiram freneticamente. Raro é ver outra dança no campo, porém, nas cidades, as danças inglesas quase que substituíram o batuque”[5].
Durante quase todo o século XIX o batuque sobreviveu nas vendas e festas de gente pobre. Num determinado momento, passou a ser chamado pelos ricos despeitados de forrobodó. (Forro: de forro, ex-escravo; bodó: de bodum (buzum), cheiro de preto, ou de bode, cabra, mestiçado com negro). Esta festa de pretos e gentalha seria, hoje, o nosso forró[6].
Mas, voltando aos primórdios do batuque, quando se realizava até altas horas da noite, com toda a sua maravilhosa indecência, “onde se cometiam muitas brigas e insolências, razão de muita cabeça quebrada e fato derramado”[7], no seu palco maior:
“Pontos de ligação entre o comércio e os quilombos, esconderijo de negros fugidos, locais alegres de batuques, as vendas foram também pontos privilegiados de contrabando”[8].
Atrás do batuque e da prostituição das vendas, havia os pontos de contatos e contratos ligados ao contrabando.
O apoio governamental aos grupos de dança afro poderia garantir a sobrevivência das danças antigas. Porém, seria adequado que esses grupos, ligados ou não a comunidades quilombolas, se organizassem em associações e confederações. O batuque é o ancestral de todos os ritmos afro-brasileiros.
[1] O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, pg. 65.
[2] O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, pg. 66.
[3] Cadernos de Arquivo-l/Escravidão em Minas Gerais – APM, pg. 74.
[4] Cadernos de Arquivo-l/Escravidão em Minas Gerais-APM, pg. 73, citando SP – CMSJ, Cx.7 APM.
[5] Viagem ao Interior do Brasil, pg. 114.
[6] Yeda Pessoa de Castro, em Falares Africanos na Bahia, pg. 236, oferece outra versão de origem totalmente bantu.
[7] SESMARIA – Cruzeiro, o Quilombo das Luzes, pg. 12.
[8] Desclassificados do Ouro, pg. 179.
2003 © Todos os direitos reservados a Tarcísio José Martins
Somos BANTOS – artigo complentar: “Dialetos Africanos Falados em Minas Gerais“
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